Aconteceu em Bruxelas, nos dias 19 e 20 de junho de 2019, o encontro anual para discutir a gestão do espectro na Europa. Muitas das questões diziam respeito ao contexto do velho continente, mas algumas apresentações e conceitos se aplicavam a outras regiões, e serão aqui brevemente resumidos pensando no interesse das redes comunitárias do Brasil e do mundo.
Dividido em dois dias muito bem organizados em um centro de conferências no coração da capital belga, o BluePoint, cerca de 270 participantes de empresas, poder público e academia tiveram a oportunidade de trocar experiências e demandas em torno da gestão do espectro, com ênfase na chegada dos serviços de 5G para dispositivos móveis. As duas primeiras palestras se dedicaram ao tema de políticas do espectro, um painel apresentou um “roadmap” para o futuro do espectro e duas palestras na tarde do dia 19 trataram especificamente de novas ferramentas de gestão do espectro. Foi o que consegui acompanhar e tomar as notas que seguem.
Os temas de relevância para as políticas do espectro foram bastante diversificados. Questões sobre a “estética” do 5G, que deve aportar a necessidade de muitos cabos, poluindo visualmente as cidades, até os problemas técnicos envolvendo as antenas ativas, que otimizariam o sinal 5G, de tudo um pouco se buscou tratar. Importante ressaltar, para introduzir os temas que seguem, a maneira como estavam organizados os painéis, que refletem uma disputa real e muito intensa sobre o espectro: cada serviço/tecnologia se refere aos seus pares como família, ou seja, as empresas de celulares, os satélites, rádio e televisão e internet, cada um desses grupos é uma família; e juntos, todos se consideram uma grande comunidade, incluindo os agentes públicos, consultores e academia. Vale ressaltar que se trata de um ambiente dominado histórica e majoritamente por homens brancos.
Uma das palavras-chave de interesse da família 5G é “harmonização”, ou seja, que se invista no desenvolvimento técnico e regulatório prevendo a alocação uniforme de frequências de rádio por regiões, não por países, pensando-se sobretudo nas empresas fabricantes e nas provedores de serviço multinacionais. A harmonização é importante sobretudo para as pesquisas hoje dedicadas a frequências que não estão ainda sendo utilizadas (3.4 – 3.8GHz; 26Ghz; abaixo de 60GHz; 1270MHz,), mas já despontam como possibilidades para o futuro próximo. Interessante observar que muito se fala na “escassez” do espectro, no alto preço que os Estados cobram por um recurso extremamente “limitado”. No entanto, pelo que pude perceber, e mesmo no vocabulário de muitos presentes, há muito espectro disponível a ser utilizado, tornando imperativo inventar novas formas “to get the spectrum out there”!
Entre as preocupações atuais com o 5G destacam-se a cibersegurança e o fornecimento de equipamentos: na visão dos especialistas, esses são os dois principais obstáculos para a cumprimento da meta de lançamento do 5G até o fim de 2020 em toda a Europa. Um equilíbrio entre preço e obrigações das empresas na cobertura dos serviços foi recorrente no debate. E a divisão do espectro, proporcionando experimentos em pedaços específicos para implementação de novas tecnologias, opunha-se à visão mercadológica em defesa de uma escala global de serviços e equipamentos. Muitas vezes o clima dentro e entre famílias ficava tenso, cada qual defendendo seus clãs e interesses particulares.
As duas apresentações mais interessantes foram feitas por um diretor de agência reguladora e um pesquisador de uma consultoria para leilões de espectro. Que surpresa! Philip Marnick trabalha na Ofcom do Reino Unido, muito experiente, e rebateu um a um os argumentos das empresas que pressionavam por preços mais baixos, menos obrigações e mais incentivos ao provimento dos serviços. Afirmou o diretor da Agência reguladora (análoga à Anatel no Brasil), que as coberturas dos serviços continuavam aquém do previsto, e que a flexibilidade já oferecida pela agência permitia que as empresas utilizassem como bem quiséssem suas faixas de espectro, aludindo ao fenômeno conhecido como “refarming”, quando se trocam as faixas de frequência de provimento de um mesmo serviço buscando sua otimização e eficiência. O destaque, porém, veio com sua afirmação sobre como conceber o futuro da gestão do espectro: ao invés de se trabalhar com o atual modelo de alocação exclusiva, o gestor propôs aos presentes que começássemos a considerar a possibilidade de utilizar o mesmo espectro, de um mesmo local, para múltiplos serviços, implodindo o paradigma atual de escassez! Mas como seria isso possível?
Uma segunda apresentação tratou de dar materialidade à especulação da manhã: a aplicação de Inteligência Artificial para gestão do espectro. Jakob Blaavand, doutor em matemática, apresentou o trabalho de sua equipe junto ao Instituto Smith, que se dedica à criação de soluções para “otimização do espectro”, “segurança, eficiência e capacidade”, mantendo-se próximo ao setor industrial voltado para a inovação em equipamentos. Sua pesquisa avança hoje na aplicação da IA para o uso dinâmico do espectro, ou seja, argumenta que o uso ótimo deste “recurso” tão necessário se dá de maneira mais eficiente quando se leva em conta sua efetiva utilização, em dado momento, em um certo lugar.
A partir de “retratos” instantâneos do espectro, tirados para revelar a ocupação ou vazio de uma determinada banda, demonstrou que as máquinas – um software – é capaz de aprender a identificar sobre a ocupação do espectro e sugerir determinadas bandas livres para oferecimento de determinados serviços. Até o momento, trata-se da proposta mais dinâmica de uso dinâmico do espectro já desenvolvida e em plena capacidade de realização. Na prática, o processo é análogo ao já vivenciado na medicina, por exemplo, onde as máquinas são mais eficientes na identificação de tumores a partir de imagens: elas aprendem com os humanos a partir de verificação de seus acertos e passam a operar como “super olhos” sobre as mesmas imagens que nós, humanos, estaríamos mais propensos ao erro no diagnóstico. O software de IA vê melhor o espectro e, portanto, pode gerir melhor as demandas efetivas e dinâmicas de seu uso.
O dia de trabalho terminou e trouxe comigo muito material para rever e assimilar. Certo é que para além de um maior entendimento sobre como está avançando o 5G, sobre as disputas entre as famílias das tecnologias por seu lugar ao sol no espectro, o modelo mesmo de gestão deste bem público – hoje regulado por Estados dentro um sistema de leilões de faixas exclusivas de uso – parece mesmo com seus dias contados. Em primeiro lugar porque a demanda sobre o espectro é crescente e a inovação sobre os potenciais serviços ganhará muito em qualidade e quantidade se mais atores tiverem acesso ao espectro sem muita burocracia. Em segundo lugar, porque as novas propostas técnicas de gestão do espectro demonstram claramente que não existe uma “natureza” escassa do espectro, e que seu uso ótimo depende exclusivamente de sistemas técnicos que se voltem para a ampliação de seu uso efetivo e múltiplo. Que, por fim, o futuro do espectro depende de um crescente entendimento do que pode vir a ser o espectro, que seu design depende das pressões e demandas dos interessados, ao que devemos incluir as Redes Comunitárias de comunicação e iniciativas sem fins lucrativos em geral. O espectro, ele mesmo, é uma invenção: se não o utilizamos, ele não existe, ele não se desgasta como um recurso natural. É chegada a hora de enxergar como novos olhos esse bem tão crucial para a comunicação social, regional e global. Se queremos que o espectro seja um bem comum, é preciso criar as ferramentas técnicas, que viabilizarão as políticas e uma regulação de interesse comum. Para isso, comecemos por entender o quão estratégico é o espectro, e o quanto nos cabe inventar o espectro XXI.
Imagens retiradas do álbum oficial do 14o Fórum Europeu de Gestão do Espectro.