No dia 19 de junho 2019 estive em Cherán que fica na região Purépecha, estado de Michoacán no México. Encontramos uma comunidade autônoma com seu próprio governo e incríveis histórias. Estava acontecendo a “Fiesta de cuerpos”, uma das celebrações tradicionais mais importantes de Cherán. Uma galera com uns trajes cheios de colmeias e bichos vivos e mortos, jogando farinha na nossa cara, muita tequila e uma bebida de tamarindo incrível.
Estava iniciando o primeiro “Semillero de Redes Comunitarias del Abya Yala“, um espaço de compartilhamento entre diferentes grupos que trabalham com redes comunitárias no México e na Argentina. Nesse evento, contamos com a participação de diferentes grupos que fazem parte da região da América latina (Altermundi, Coolab, Colnodo e IEBB) do projeto “Connecting the unconnected: Supporting community networks and other community-based connectivity initiatives. “
Nossas anfitriãs em Cherán foi o coletivo Xamoneta, que tocam a radio fogata. Todo o encontro foi previamente pensado por esse incrível grupo de mulheres que tem lutado contra a opressão e tem levantado sua voz para dizer como querem a sua própria tecnologia.
Logo na apresentação de tudo que iria acontecer em cada dia, as autoridades locais do governo autônomo se apresentaram e falaram sobre Cherán e sua luta, que agora é reconhecido pela suprema corte do país como um governo autônomo por usos e costumes.
Dinâmicas de apresentação… muita gente de Oaxaca e Michoacán. O grupo foi dividido em dois times; um desenho participativo e intranet comunitária com Redes e outro sobre construção das redes comunitárias com Altermundi.
Pude participar do grupo de desenho participativo. Uma metodologia revolucionária para trabalhar com processos de comunicação comunitária baseada nos conhecimentos ancestrais dos povos indígenas, desenvolvido pelo brilhante grupo de Redes AC. Logo na apresentação, ficou notável uma característica muito interessante; havia muita gente da área de telefonia móvel comunitárias e radio comunitárias querendo se envolver com redes de internet comunitária. Notei que a grande maioria tinha dificuldades que tivemos no começo, principalmente no que tange à documentação de temas técnicos elementares.
Eu achei incrível a apresentação da matriz de seleção de tecnologias. Nessa metodologia a ideia é fugir do determinismo da tecnologia, e valorizar o desenho participativo comunitário.
Ficou muito claro para mim que para além da tecnologia precisamos entender o local que estamos e as suas lógicas. Pudemos ver que mesmo quando se obtém sucesso em um determinado projeto comunitário, isso não é suficiente para que projetos futuros tenham o mesmo sucesso. O essencial é a construção participativa, o que parece suficiente para um sucesso no processo em si.
O ponto de partida é o território, ele nos aporta a identidade e todas as questões que pudermos levantar como: quem somos, onde estamos, como vivemos e como fazemos. Um ponto muito importante é identificar a estratégia e os sonhos coletivos. Nesse momento, devemos pensar nos conflitos e nas coisas que podem dar errado e o que podemos fazer para que isso não atrapalhe o projeto. E, claro, tudo depende muito de cada local, principalmente os pontos de divergência.
Fizemos um exercício de aplicar a metodologia usando a PSP como exemplo. Uma questão latente na comunidade é o encontro de pessoas que vem de fora com pessoas que nasceram na comunidade. Uma estratégia de atuação seria trabalhar a memória de quem nasceu no local, compartilhar com quem está chegando para entender o lugar, aprender a respeitar o local e os costumes. Da mesma forma, quem chega pode trazer o que já conheceu em outros lugares e dessa troca nasce uma comunicação. Outra estratégia seria aproveitar tudo que acontece na comunidade e achar similaridades e deixar fluir a comunicação.O passo seguinte é tratar então do projeto (uso de TIC): analisar as tecnologias, explorar as opções de uso e apropriação e depois implementar.
Finalmente é o momento da festa, celebrar é parte essencial do processo e marca o final do ciclo! Dentro dessa metodologia o próximo ciclo começa com uma avaliação para então, novamente, pensar o território, a identidade, a estratégia, a tecnologia, a implementação e a celebração.. um ciclo que se retroalimenta do anterior.
No final, muitas coisas foram ditas, mas algo muito importante é sobre os conflitos que estamos expostos com uma rede comunitária. A maior lição é evitar os conflitos, eles provavelmente vão surgir, é natural da essência humana, mas a ideia da ferramenta não é focar neles e sim focar nos sonhos, o que une as pessoas são os sonhos e isso torna o processo mais fácil e com maior capilaridade na comunidade.
Coding dojo de redes locais
Enquanto as atividades do semillero prosseguiram, fiquei focado em organizar as coisas da rede local. Tínhamos em mãos um celeron com 2GB de memoria ram e 2TB de armazenamento e a ideia era instalar nele o yunohost, o mesmo sistema que usamos há muito tempo na PSP . Além disso, o desafio era configurar no libremesh para que o servidor local ficasse acessível pelo domínio escolhido pela comunidade. Como notado no início, havia muita dúvida sobre questões técnicas, então decidimos, ao invés de simplesmente deixar tudo configurado e exemplificar em uma oficina, aproveitaríamos o tempo que tínhamos e adaptar a metodologia do coding dojo.
O coding dojo é uma metodologia de aprendizagem muito utilizada em hackerspaces para aprender a programar códigos computacionais. Nessa dinâmica, todas as pessoas constroem juntas a solução, alternando a posição reflexiva da plateia (que predominantemente ocupa a posição da escuta) com as posições mais ativas de piloto (quem está fazendo) e copiloto (quem auxilia com sugestões). Todos que estão na plateia vão se revezando entre copiloto e piloto sucessivamente. Assim, a missão vai sendo construída a partir do trabalho acumulado dos pilotos anteriores.
O coding dojo é estruturado a partir de micro-passos, o mais simples possível cada passo, fazendo com que qualquer pessoa, independente do conhecimento técnico, possa acompanhar. E sempre que houver dúvida, deve se manifestar e sanar a dúvida para que todo o time avance junto.
Os micro-passos que seguimos foram os seguintes:
Passo 0 – desenhar a rede e os dispositivos que estão conectados a ela
Passo 1 – Ligar o computador e conectar na rede mesh
bônus – explorar quais ferramentas existem no computador para acessar outros dispositivos
Passo 2 – descobrir qual o ip do seu dispositivo
Passo 3 – descobrir o ip do roteador e do(s) servidor(es) local
Passo 4 – configurar um ip fixo no servidor com yunohost em /etc/networks/interfaces
Passo 5 – acessar os dispositivos com as diferentes ferramentas encontradas
Passo 6 – cadastrar o servidor local no /etc/hosts
Passo 7 – cadastrar o servidor no dhcp
Passo 8 – configurar o redirecionamento do pirania em /etc/config/pirania e resetar em /etc/init.d/pirania restart
Foi interessante do ponto de vista técnico configurar o servidor local em uma rede mesh de maneira mais resiliente. Muitas vezes, adicionamos o endereço de um servidor em /etc/hosts com um ip fixo do servidor e o nome que queremos que ele tenha na rede. Só que dessa maneira pode acontecer de o roteador oferecer o ip do servidor para outro cliente e isso pode causar um grande problema de conflito de ip. Conseguimos encontrar uma solução! Adicionamos uma linha em /etc/config/dhcp.
Instalamos o yunohost para usar com a comunidade de Cheran. Antes do encontro o coletivo Xamoneta, através da metodologia do desenho participativo, puderam gerar a sua estratégia. A partir disso, elegeram suas tecnologias, no caso foi escolhido o Nextcloud (para o compartilhamento de arquivos), o wordpress (um blog para compartilhar suas histórias) e até um joguinho chamado hextris.
Antes de partir de Cherán, configuramos tudo o que foi feito no coding dojo na rede mesh configurada com os librerouters do time que ficou trabalhando com a Altermundi.
Ao configurar, percebemos que quando os usuários entrassem no servidor e não tivesse alguém para explicar a mensagem de erro do browser – de que o servidor é auto assinado e não confiável – poderia fazer com que as pessoas acreditassem que não estava funcionando.
Por um lado, é uma oportunidade de entender como a internet funciona e toda a coisa do protocolo ssl, mas também é arriscado dizer que isso não é importante e que o usuário deva ignorar a mensagem de falta de segurança.
Coding dojo com Redes AC
Houve ainda uma atividade muito especial: fui convidado por Karla para fazer uma atividade de coding dojo com o pessoal do coletivo Redes AC. Participaram Karla, Blanca e Adrian. Fizemos algo como o coding dojo que havíamos feito com o pessoal do semillero, mas agora desde a instalação do yunohost.
Tivemos um problema ao instalar o yunohost em um computador que já tinha um sistema operacional ubuntu. A questão é que o instalador do yunohost/debian encontrava as partições que já existiam no computador e não criava novas partições e nem apagava as que já existiam, retornando um raro erro.
O que fizemos para resolver foi entrar na instalação expert no modo raid e apagar todo o disco, reiniciar a instalação com o disco vazio e refazer o processo normal.
Depois de instalado, passamos um bom tempo para fixar um ip. Como eu não me lembrava exatamente como fazia, foi um momento interessante de entender o arquivo /etc/network/interfaces do servidor.
Depois de tudo instalado e configurado caímos na questão do certificado ssl. Acontece que para um servidor local ter certificado ssl (mesmo com letsencript) precisa ter internet e instalar esse certificado, que inviabiliza redes offline.
Mas entramos numa questão que uma rede de intranet como a que instalamos em Cherán não faz sentido ter o certificado ssl uma vez que não tem internet, mas os navegadores vão sempre reclamar e bloquear servidores com certificados auto assinados, essa é a lógica do ssl. O que nos colocou em um ponto de singularidade aí.
Levei a questão para meu coletivo e estamos estudando a melhor maneira de resolver isso.