Regulação para Redes Comunitárias no século XXI: Espectro Livre

O tema da regulação/legalização das Redes Comunitárias tem despertado muito interesse em todo o mundo. Ao mesmo tempo em que, em alguns países, avança o reconhecimento sobre a importâncias das Redes Comunitárias como um ator relevante para a ampliação do acesso à Internet em áreas rurais e de difícil acesso (ou pouco interesse econômico), em outros o debate sobre infraestruturas de comunicação autônomas ainda precisa de muito aprofundamento, e enfrenta a emergência de governos pouco engajados na ampliação de direitos fundamentais.

Alheio ao debate político, o espectro radioelétrico é hoje concebido em um novo contexto de evolução dos sistemas técnicos, que permite seu uso dinâmico a partir de técnicas de gestão muito mais eficientes que o modelo executado por estados durante o século analógico: trata-se da gestão dinâmica do espectro.

Em todo o mundo, nos mais diversos fóruns e encontros internacionais, novos conceitos de uso do espectro emergem como possibilidades efetivas de ampliação de uso deste recurso tão fundamental para as comunicações locais, regionais e globais. Abaixo seguem alguns dos principais debates em curso entre reguladores, formuladores de políticas e pesquisadores.

Ao atribuírem faixas de frequências para exploração comercial de empresas, governos e sociedade civil têm observado uma enorme dificuldade em se alcançar a universalização do acesso a serviços básicos de comunicação, como acesso a uma rede de celular ou à Internet. Isso ocorre porque as empresas não vislumbram um negócio lucrativo em localidades onde há baixa densidade demográfica ou são de difícil acesso, o que tornaria a instalação de infraestrutura mais cara. Como opção para permitir que esses grupos excluídos tenham a possibilidade de se comunicarem, reguladores de todo o mundo têm debatido sobre a viabilidade de se concederem licenças secundárias de uso do espectro, ou seja, mantendo-se a “propriedade” da faixa de frequência do detentor do direito de exploração primário, que pagou em um leilão de frequências por esse direito: a proposta é de que um uso secundário, local, seja permitido, especialmente se não possuir fins lucrativos. A despeito de seu caráter pretensamente progressista, pesquisadores e representantes da sociedade civil consideram que o uso secundário não garante o investimento local na infraestrutura, uma vez que, ao se criar a demanda de uso, a qualquer momento, o detentor do direito primário poderia se apoderar da frequência e causar a perda de todo o trabalho local de construção da rede comunitária.

Uma outra ideia para o uso secundário do espectro é o assim chamado “compartilhamento do espectro”. Trata-se de um conceito bastante ambíguo, pois não garante direito algum, apenas torna mais “flexível” a ocupação do espectro a partir de uma abordagem dedicada ao espectro que se compartilhada “no tempo e no espaço” [spectrum sharing in time and space]. Na verdade, o compartilhamento do espectro poderia refletir uma realidade técnica na qual não haveria mais necessidade de funcionamento de faixas exclusivas, ou seja, fosse a partir de uma base de dados ou de tecnologias de monitoramento local do espectro em tempo real, o uso efetivo do espectro ganharia muito mais atores se permitisse e incentivasse o compartilhamento como um novo paradigma para gestão do espectro [spectrum management]: quando não se estivesse utilizando, qualquer um poderia ocupar uma faixa livre no espectro. Uma transmissão “de alta qualidade” também poderia ser reduzida para dar espaço para entrada de outra, e assim sucessivamente.

Com a digitalização dos meios de comunicação, incluindo a tv e o rádio, um único transmissor é capaz de enviar 4 ou mais programações: é o que se chama de multiprogramação. Na atual regulação de tv digital do Brasil, todo município brasileiro tem direito a solicitar o seu canal cidadania gratuitamente (algo inédito até hoje), e com isso dispor de “duas faixas para associações comunitárias, com programação local de interesse da população beneficiada”. Além da programação audiovisual, a tv digital já vem com interatividade, e pode transmitir dados e serviços, constituindo-se em uma tecnologia com enormes potenciais para as redes comunitárias do Brasil e América Latina.

Há mais de década se discute no Brasil a proposta de uma regulação que contemple tanto técnica quanto socialmente a liberdade de expressão de qualquer pessoa, independentemente de prévia autorização. Dentro do sistema fundado sobre o mito da interferência, que cria as avenidas privadas de comunicação, por que não existem as vias abertas, o espectro aberto, onde todos podemos nos comunicar sem fins lucrativos?

Trata-se de reconhecer a possibilidade de tomada direta do espectro a partir de uma realidade técnica hoje viabilizada com equipamentos acessíveis de monitoramento local do espectro e modulação em todas as frequências.

[The end of spectrum scarcity] Esse encontro analógico-digital significa mesmo uma mudança de paradigma, passando-se de um modelo de gestão de um bem escasso para um sistema aberto de livre apropriação em um universo de abundância em que a gestão do espectro é mais eficiente por ser dinâmica.

Ou seja, tal como previsto no Art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no Art 5o inciso 9o da Constituição Federal Brasileira, o Estado não precisa necessariamente autorizar o uso do espectro para atividades de comunicação, científicas, sem fins lucrativos. E muito menos nesse começo de século, quando já dispomos de tecnologias muito mais eficientes que superam o modelo de concessão, realizado desde um poder centralizado em uma capital incapaz de enxergar o potencial específico que cada localidade possui para desenvolver suas ferramentas de comunicação. E se o espectro fosse municipalizado (Silveira, 2001), cada cidade desenhando sua maneira de gerir o próprio ambiente digital potencializado em uma multiplicidade de experimentações ao largo de um território continental?

O Espectro Livre propõe então que levemos em consideração a natureza jurídica das infraestruturas de comunicação que dão acesso à informação e contribuem na criação de uma esfera pública de debate: trata-se, sobretudo, de uma proposta que visa garantir a complementaridade dos meios de comunicação social, incluindo uma nova categoria universal para um possível direito do povo à comunicação.

A predominância do interesse comercial sobre a gestão do espectro pode ser interpretada junto à ideia de que o “meio é a mensagem“: uma empresa de jornal, televisão ou rádio promove, a partir mesmo de sua estrutura, a contaminação da esfera pública com seus interesses privados: eis o resultado direto dos editoriais, por exemplo, que fazem parecer de interesse geral as manifestações de particulares. Para contornar essa dificuldade em se promover uma esfera pública de debate público equilibrada, a maioria dos países democráticos adota medidas de “complementaridade dos meios de comunicação social” (no Brasil, o Art 223): uma esfera pública surgida da convivência de empresas privadas, públicas e iniciativas comunitárias de comunicação permitindo tanto a pluralidade quanto a diversidade de fontes para acesso à informação.

Para nosso especial interesse, em grande parte da América Latina, a complementaridade dos meios de comunicação social resultou na divisão equitativa do espectro: 33% para empresas, 33% para os governos e 34% para comunidades. Na Bolívia, esses 34% foram ainda divididos em 17% para indígenas bolivianos e 17% para campesinos, inaugurando uma abordagem étnica para o uso do espectro. Ao comparar esses regulamentos de organização do uso do espectro em nível nacional, o Espectro Livre se propõe a uma solução universal a partir da reserva comum de 34% do espectro para uso sem fins lucrativos, dispensando a necessidade de prévia autorização. Embora esse princípio já esteja contemplado na resolução 680, o acesso às demais tecnologias depende de licenças experimentais que expiram depois de 2 anos, e não tratam da possibilidade de acesso a longo-prazo. Como realizar a passagem para uma gestão mais flexível do espectro que contemple o acesso o mais amplo possível das pessoas à co-criação de suas próprias formas de infraestrutura comunicativas?

Pesquisas jurídicas mais recentes, atentas aos riscos que os equipamentos de radiação podem causar à saúde, à sadia qualidade de vida, apontam para um conceito inovador sobre o espectro: entendem-no como bem ambiental. Não sendo público, nem privado, esse bem difuso seria regulado diretamente pela sociedade civil por meio de relatórios técnicos de impacto ambiental, deslocando a gestão estratégico-militar de comando e controle para uma gestão cidadã e ecológica do espectro, com ênfase no pleno exercício do direito de antena (Fiorillo: 2000).

Considerando o atual contexto de revisão da Lei do FUST, que acumulou um fundo de universalização que previa o cumprimento de certos objetivos (Art. 5o Os recursos do Fust serão aplicados em programas, projetos e atividades que estejam em consonância com plano geral de metas para universalização de serviço de telecomunicações), associada à aprovação do PLC 79, celebrado pela ANATEL como uma atualização “do anacrônico marco regulatório das telecomunicações, reorientando seu foco para a universalização e massificação do acesso à internet em banda larga, reconhecidamente essencial para a plena realização da cidadania no século XXI” resta saber que papel poderia ser exercido pelas Redes Comunitárias. Atentos ao histórico de regulamentação das Rádios Comunitárias, ao se propor um conceito de Redes Comunitárias, há que se evitar que seu resultado mais imediato seja a criação de um conjunto de regras que tornaria ilegais todas as iniciativas que não se enquadrassem em seus termos (no Brasil, foram condenadas milhares pessoas por radiodifusão ilegal pós-9.612, de 1998, sobretudo por iniciativa de criminalização partida da Associação Brasileira de Rádio e Televisão – ABERT).

Por outro lado, o estabelecimento de uma agenda de trabalho coletivo entre diferentes organizações do continente, criando laços entre redes apoiadas por organizações internacionais como a ISOC e a APC tem contribuído para o desenvolvimento das redes comunitárias em muitos países.

Assim, ao compreender que todo debate jurídico é também político, econômico e social, há que se trabalhar na criação de um conceito de Redes Comunitárias habilitado a receber recursos do FUST, relacionando-o às novas formas de uso de infraestrutura de telecomunicação (PLC79). No que a experiência de nossos colegas latinoamericanos, como na Argentina, pode nos ajudar a pensar e atuar em nosso próprio e particularíssimo contexto?

O Espectro Livre se mantém, assim, como uma alternativa tanto prática quanto teórica. É prático porque se vale da Resolução 680, que torna dispensável a autorização para provimento de internet comunitária para menos de 5 mil usuários. Na teoria, porque continuamos insistindo em uma proposta de alcance global, amparada por direitos internacionais adotados em constituições nacionais: o direito à informação, que para nós inclui a telecomunicação, independentemente de fronteiras ou prévia autorização (sendo também uma alternativa à vigilância).

Por fim, resta ainda nos perguntarmos o quanto as metáforas vigentes no século analógico ainda nos servem com o digital. Entender o espectro como um bem ambiental (Art 225), como bem comum, e compará-lo à água, cuja natureza é ser escassa; ou o espectro seria mais bem definido como um bem comum tecnicamente mediado, já que não perde qualidade com seu uso e pode comportar distintos sistemas técnicos que desafiam sua natureza escassa para permitir sua ocupação por muito mais atores? Que implicações sociais e ecológicas podem ser antecipadas quando se passa a entender o espectro radioelétrico a partir de relações humano-máquina que efetivamente co-produzem em movimento aquilo que significamos como espectro?

Eis a proposta ontogenética do espectro livre, que é ao mesmo tempo tanto uma abordagem político-regulatória, quanto outra tecnoestética. Mais amplamente, o modelo de evolução técnica que acompanha o espectro livre se dá a partir de objetos abertos, alternativos aos resultantes do modelo baseado em objetos fechados, que circulam como mercadorias. O que seria uma sociedade global de comunicação livre, que mantém suas próprias infraestruturas com acesso facilitado a todas as faixas de frequência do espectro sem necessidade de pedir permissão ou concessão, como prevê o inciso 9o ao definir a liberdade de expressão?

Referências

BELISÁRIO, Adriano [2017]. Espectro Livre como alternativa tecnopolítica à vigilância.

FIORILLO, Celso Pacheco Antonio [2000]. O Direito de Antena Em Face do Direito Ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva.

PINHEIRO, Guilherme Nunes [2013]. “Uma Perspectiva Neoconstitucional da Regulação do Espectro Radioelétrico”. REVISTA Direitos Humanos e Democracia, Editora Unijuí, ano 1, n. 2, jul./dez. (Ver também tese de doutorado do autor, 2015. A Regulação do Espectro de Radiofrequência no Brasil: uma visão crítica sob a perspectiva dos bens públicos).

NOVAES, Thiago [2013]. Espectro Livre: o direito do povo à comunicação. Rev. Lugar Comum 40.

SILVEIRA, Fernando [2001]. Rádios Comunitárias. Belo Horizonte: Editora Del Rei.